Gabriel Milliet lança “UM”, o primeiro disco de sua carreira solo

Um violão dedilhado bucolicamente, acompanhado de uma percussão mínima e discreta, abre os ares de uma canção que começa pessimista, falando que “às vezes dá tudo errado”. “Silêncio Brutal” é o primeiro single e faixa de abertura de UM, álbum de estreia de Gabriel Milliet (Matraca Records). A faixa parece anunciar um disco de lamento, especificamente quando contrapomos esta canção inicial à experiência recente do músico, que mudou-se para a Amsterdam há seis anos e viu seu país e sua cidade se transformando de uma forma radical – isso sem contar questões sanitárias e políticas relacionadas ao Brasil destes últimos anos.  

A distância fez Gabriel perceber o quanto precisava conectar-se com sua cultura e a saudade misturou-se com uma sensação de pertencimento – e de desconexão – que o fizeram finalmente compor seu próprio trabalho solo.

Neste primeiro disco, Gabriel Milliet sintetiza-se neste personagem clássico que os norte-americanos rotularam de singer-songwriter há quase meio século e que no Brasil gerou esse neologismo “cantautor” nas últimas décadas. Personagem que estabeleceu-se no mercado da música a partir dos anos 1970, depois que, na década anterior, os Beatles e Bob Dylan romperam as barreiras que separavam os intérpretes dos compositores, inspirando novos artistas em todo o planeta.

Dez anos depois, aquele novo formato se consolidava e o trabalho de Milliet bebe na fonte de diferentes autores deste período, entre os citados conscientemente (como Paul Simon, Cat Stevens, Zé Rodrix, Belchior; Gilberto Gil, Caetano Veloso, Elton John, e Nick Drake) e os que ressoam além das referências mais evidentes (como Jorge Mautner, Van Morrison, James Taylor, Sérgio Sampaio, Carole King e Chico Buarque). Em comum, quase todos trabalham a canção a partir do instrumento que Gabriel escolheu para acompanhá-lo nesta jornada – o violão de cordas de nylon.

Essa conexão também o traz inevitavelmente para o universo de seus contemporâneos. Ex-integrante das bandas Memórias de um Caramujo e Grand Bazaar, Gabriel é parte da mesma cena que revelou artistas como O Terno, Sessa e Luiza Lian e também trabalhou com Luiz Tatit e Beto Villares, todos artesãos da canção que trazem o violão para seu território musical. Com este último, faz trilha sonora para filmes e obras audiovisuais, área da sua musicalidade que acaba refletindo-se em seu lado cancioneiro.

Seu trabalho é cheio de texturas, climas e ambiências, que acabam costurando e dando força às canções. Entre estas duas safras de músicos está outra forte influência do álbum, citado quase nominalmente quando Gabriel canta sobre “escutar o cronista paulista que vai mergulhar na surpresa”, mencionando o nome de um dos discos clássicos de Maurício Pereira.

Seu próprio lado “cronista paulista” paira por todo o disco, ele o faz à distância, tanto a partir do olhar saudoso no velho continente, onde gravou originalmente todas as canções em fita cassete, quanto mais próximo, em visitas que fez ao Brasil no período pandêmico e conectou-se com o Biel Basile, companheiro de banda no Grand Bazaar e baterista do grupo O Terno.

A pandemia fez com que Biel corresse para o litoral, onde montou um estúdio caseiro numa casa em Ilhabela, refúgio em que Milliet começou a interferir nas gravações feitas na Holanda, quando Basile assumiu a co produção musical do disco, que originalmente era só de seu autor. Neste novo cenário, adicionou uma série de novos instrumentos, convidando amigos tanto de um lado quanto do outro do Oceano Atlântico.

Milliet toca flautas, violões, baixo, guitarra, percussão, piano e sintetizadores e convidou o pianista Jarno Van Es, o violinista Lucas Bernardo, o contrabaixista Pedro Ivo Ferreira, a flautista Teresa Costa e as vocalistas Fuensanta e Sanem Kalfa, além das percussões de Biel. E o que parecia ter dado errado na verdade foi um grande acerto: de volta ao Brasil, Milliet hoje desponta como um dos novos talentos entre os chamados cantautores desta nova safra pós-pandêmica. UM é uma bela apresentação.

Alexandre Matias (www.trabalhosujo.com.br) é jornalista, curador de música e diretor artístico

Faixa a faixa de UM

Silêncio Brutal

O primeiro single foi a canção que fez Gabriel entender a necessidade de fazer este álbum. “Era outubro de 2019, outono em Amsterdam, clima horrível, eu tinha terminado meu mestrado no conservatório e estava tentando entender para onde ir, o que fazer. Tinha saído de um grupo de cumbia psicodélica em que tocava guitarra, e parado de fazer gigs de ‘brasileiro profissional’ tipo tocar samba na noite de Amsterdam. Estava buscando minha voz, e claro, estava pensando em São Paulo. Sentia saudade de ser paulistano, de São Paulo, e de fazer música de paulistano”. Gabriel define “Silêncio Brutal” como uma “canção-carta”, uma das muitas do disco – “uma chamada interurbana entre o outono silencioso dos países baixos e o silêncio caótico dos apartamentos paulistanos.”

O Sol e o Mar

Se algumas canções de Um são cartas, esta é um cartão postal – e uma música de amor: “Foi escrita em abril de 2020 – eu tinha estado no Brasil em janeiro, verão torrando, fui pra Ponta Negra, em Paraty. De volta na Holanda, começo da pandemia, aquele sentimento estranho de mundo parado, ninguém entendendo o que estava rolando, o frio do inverno sem dar trégua. De repente aquela viagem que eu tinha acabado de fazer, aquele verão tropical pré pandêmico se tornou inimaginável. No Brasil temos o privilégio de achar normal paisagens naturais absurdamente lindas. Talvez meu encanto com as lembranças dessa viagem pareça até exagerado para quem nunca ficou um tempo longe dessa coisa potente… às vezes a gente aprende com a falta, com a escassez. “ Gabriel também cita o Canções Praieiras, de Dorival Caymmi, como referência para seu disco – especificamente esta canção.

Carta de Natal

Uma correspondência musical com o amigo João Baptista Barisbe, ex-companheiro de Grand Bazaar, que materializou-se em canção. 

Grande Hotel São João

Inspirada em um clássico do chileno Victor Jara (“Luchin”) esta é mais uma canção paulistana no disco, trazendo o centro da cidade para o foco da canção. “Nessa o Biel Basile toca percussão, e boa parte dela foi produzida no estúdio dele na Ilhabela”, conta Gabriel. “Gosto do solo de piano, que foi uma ideia que encontramos juntos – desmontado e rebelde, guarda semelhança com o tom quase juvenil, mas irônico da letra.”

Vento de Oya

Canção rara no disco, é uma canção de amor que começou a ser composta há quase dez anos, quando Gabriel começou a compor músicas para uma coletânea produzida pelo Selo Risco. “Minha amiga Teresa Costa, incrível musicistas portuguesa, gravou o trio de flautas alto que escrevi”, lembra o autor.

Rua Vitória

Outra canção sobre o centro de São Paulo, a verborrágica “Rua Vitória” é um dos pontos centrais do disco. “Estava visitando São Paulo e fiquei uns dias alojado num Airbnb na Rua Vitória, no centro”, lembra o autor. “Nessa visita, depois de um ano de pandemia, tive pela primeira vez a sensação de que tudo estava diferente, de que o lugar de onde eu tinha saído em 2016 não existia mais em 2021 – reparei que a cidade estava mais mal cuidada, as pinturas das casas e prédios descascando, o tom mais pesado nas ruas, tanto pela questão sanitária quando pela questão política. Essas percepções um pouco trágicas, a sensação melancólica daquele momento, a consciência de que não havia mais como voltar para trás, foram a base emocional sobre a qual escrevi essa canção. Estava mesmo perguntando se São Paulo tinha um futuro, e o que fazer já que aquele lugar do meu passado, para o qual eu desejava voltar, já nem existia mais.”

Futuro

Outra carta, desta vez para Ronaldo Bastos e Novelli cantados por Milton Nascimento na faixa “Minas Gerais”, do disco Geraes. “Os temas do retorno à origem, à raiz, ao país, a perspectiva introvertida e extrovertida sobre si e sobre a cidade durante processos de movimento, que atravessa o álbum, aconteceram no meu caminho de vida e criação em paralelo a um retorno composicional à forma canção, que no Brasil é quase sinônimo de música – o que acaba por vezes marginalizando outras formas de criação musical. “

Carta de ano novo

Mais uma correspondência musical, essa é a resposta que Milliet fez à carta do amigo João. “Apesar de não ser a última do disco, é ela que fecha. Aponta um retorno até meio esperançoso, tem um arranjo bem nostalgia 70s, e vai de novo no modo primeira pessoa, sem muita firula.”

Da Paz Inevitável

Gabriel vê essa última música como um posfácio. “É a conclusão mais madura em termos de poesia das coisas que foram passando ao longo do álbum de forma menos rebuscadas e mais desnuda”, explica. “É quase um antídoto contra alguma melancolia e alguma nostalgia do processo poético do disco, um samba, mesmo eu não sabendo que era um samba quando a gravei.” Ele compara o estilo metafísico da composição a certas músicas de Gilberto Gil. 

Fonte: Assessoria de Imprensa do artista

*Foto: Biel Basile

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